Entrevista: André Letria
Não gosta de desenhar em toalhas de papel, lê tudo o que consegue deitar a mão e reconhece que as crianças são pessoas diferentes com uma imensa capacidade de se deixarem maravilhar
Sempre quiseste ser ilustrador?
Sempre gostei de desenhar. A pouco e pouco, com o incentivo dos meus pais, fui prestando atenção a coisas artísticas e fui criando um gosto pessoal por várias formas de arte. Até ao primeiro ano da faculdade (onde entrei para tirar um curso de pintura que não acabei) não sabia bem o que era a ilustração como atividade profissional. Conhecia poucos ilustradores – a maior parte em Portugal vinha da pintura ou do design – e estava longe de imaginar que poderia dedicar-me à ilustração como faço hoje.
Lembras-te do primeiro desenho que fizeste?
Lembro-me de alguns períodos em que senti o prazer da descoberta e me apercebi de algum tipo de progressão na forma como desenhava.
Nas férias grandes, que passava em Cascais com a minha avó paterna, sempre desenhei. Foi nesses verões que comecei a ter cadernos com desenhos. Nem sempre os usei de forma regular e hoje tenho de fazer algum esforço para os preencher, mas aquela desocupação estival fazia bem à minha vocação artística. Por baixo da casa dos meus pais, em Queluz, havia uma loja ocupada como ateliê pelo Fernando Cruz, um pintor que também era professor na altura. Como conhecia a minha família, convidou-me a passar por lá depois da escola. Eu devia ter uns 14 anos e ainda hoje, quando o encontro, recordamos essas “aulas” como as minhas primeiras experiências sérias ligadas ao desenho e pintura.
De que gostas mais: lápis ou canetas?
Todos os materiais são úteis. Nas coisas que faço como ilustrador experimento muitas técnicas diferentes. Gosto de escolher um determinado estilo de ilustração em função do texto sobre o qual tenho de trabalhar. Cada texto (às vezes basta uma ideia sem texto) sugere uma atmosfera particular e a escolha dos materiais ajudará a defini-la de uma forma mais eficaz.
Quando comecei a fazer ilustrações para livros e jornais, usava aguarelas, mas cansei-me depressa porque senti algumas limitações. Para além de ser um material muito difícil de dominar, achei que podia variar pouco. Quando descobri os acrílicos agarrei-me a eles durante muito tempo. Usava-os sobre papeis muito variados e senti uma liberdade criativa muito maior. Hoje faço a maior parte do meu trabalho recorrendo ao computador. Já faço algumas ilustrações sem passar pelo papel, porque uso uma mesa digital que me permite desenhar diretamente sobre o ecrã, mas não deixei nem deixarei de desenhar e pintar com os materiais antigos. Incluindo lápis e canetas.
Fazes desenhos na toalha de papel do restaurante quando estás num almoço ou jantar com amigos?
Poucas vezes. Preciso de algum sossego para produzir alguma coisa. Não gosto muito de ser observado quando estou a trabalhar. E tenho amigos que desenham melhor e mais depressa do que eu.
O teu estúdio é a tua casa?
É, pelo menos, o sítio onde passo mais tempo. Gosto de me isolar neste espaço que fui enchendo com livros, tintas, pincéis, objetos pessoais, discos de vinil, etc. Durante muito tempo trabalhei em casa e nessa altura não havia separação de espaços. Desde que criei o Pato Lógico , passei a trabalhar num espaço diferente, onde chego de manhã cedo e de onde saio muitas vezes muito tarde. É como se fosse uma extensão da minha casa.
Onde vais buscar inspiração? Livros, viagens, conversas?
A essas e outras fontes, mas principalmente a uma disciplina de trabalho que implica rotina e capacidade de segmentar tarefas muito diferentes ao longo do dia. As coisas que faço podem variar entre a leitura de um texto para editar, o trabalho numa ilustração para um cartaz, a paginação de um livro ou mesmo a entrega de livros numa livraria que vende os livros do Pato Lógico. Todos estas atividades podem até estar ligadas entre si, mas implicam mecanismos e formas de pensar diferentes.
Lês muito? Do que gostas?
Leio tudo o que posso. Poesia, filosofia, ficção, divulgação científica, ensaio, etc. Aqui à minha frente, enquanto respondo a estas perguntas, tenho os “Pensamentos”, do Marco Aurélio, uma “Introdução à Cultura Portuguesa”, do Miguel Real, “A Invenção da Natureza”, de Andrea Wulf, sobre o naturalista e geógrafo, ou o “Discurso Sobre a Servidão Voluntária”, de Étienne de La Boethie. Alguns já lidos, uns para ir lendo e outros para ler brevemente. Durante muito tempo li sem nenhuma rotina especial e por isso lia menos. Hoje guardo pelo menos uma hora todas as manhãs para ler. Normalmente fico pelo café que há perto do ateliê.
Quais os teus sites favoritos?
Os meus sites favoritos tendem a ser espaços dedicados à arte e às coisas gráficas e editoriais. Alguns são redes sociais como o Instagram ou o Pinterest, que uso para descobrir trabalhos de outros artistas ou para seguir a atividade de instituições cuja a atividade me interessa, que podem ser museus ou outras editoras. Aqui ficam algumas sugestões: Is Nice That, Grain Edit, Picturebook Makers e Under Consideration.
O mundo está todo virado para o digital. O que representam os livros para ti?
Representam, desde logo, a minha atividade principal neste momento: a de editor. O Pato Lógico faz livros em papel, com uma atenção grande dada aos materiais em que os imprime. Vemos os livros como objetos artísticos em que a experiência sensorial conta para a experiência estética. Aqui o meio também é a mensagem.
Cada vez que avanças para uma nova coleção, uma nova ideia, o que te move?
A criação de uma nova coleção pode nascer de várias motivações. A dos Atividários foi imaginada com o objetivo de criar um espaço de descoberta, desde logo para os autores. Trabalhar nos títulos que já publicámos nesta coleção (Mar e Teatro, com textos do Ricardo Henriques) implicou sempre um trabalho de pesquisa muito grande, porque escolhemos temas vastos, que permitem abordagens muito diversificadas, com referências que abarcam muitos domínios do conhecimento. No caso da coleção Imagens que contam , que desafia ilustradores a contar histórias sem texto, interessou-me a possibilidade de trabalhar com ilustradores que admiro, ao mesmo tempo que lhes colocávamos um desafio formal pouco comum.
A coleção Desconcertina, por outro lado, é um espaço de liberdade e risco que assumo de uma forma mais pessoal e intimista. Também tem de haver uma consciência de catálogo e uma necessidade de coerência que definam a identidade da editora.
As crianças são pessoas diferentes?
As crianças têm uma capacidade imensa para se deixar maravilhar. O período da infância é aquele em que o nosso cérebro e os nossos sentidos se desenvolvem com maior rapidez e talvez por isso sentimos uma voracidade enorme para aprender coisas. E acreditamos nas coisas com a ingenuidade de quem acha que tudo é possível. Depois crescemos e preocupamo-nos demasiado com o mundo real, com os limites da imaginação, como se fosse errado poder voar ou sonhar acordado. Sim, as crianças são pessoas diferentes e trabalhar para elas é tentar recuperar a maneira delas olharem para o mundo.
Fazes livros para crianças ou livros para toda a gente?
Começo por fazê-los para mim. Depois, para os que os quiserem ler (mesmo que não tenham texto). Eles podem ser para toda a gente. Para todos os que ainda sentem o apelo da descoberta e veem nos livros o veículo ideal para se deixar maravilhar.
Achas que com a ilustração podes ajudar a traduzir cidades, países, tendências, ideias, tradições?
Acho que posso criar pequenos mundos que cada leitor pode habitar e preencher com as suas experiências. Acho que os álbuns ilustrados são objetos artísticos que estimulam o papel do leitor como terceiro autor, completando os espaços deixados livres pelo texto e pelas imagens.
Sentes que tens uma missão ou gostas só muito do que fazes?
Tenho a missão de fazer coisas de que goste muito. Por isso criei o Pato Lógico onde posso ser ilustrador ao mesmo tempo que partilho o desafio da edição com uma equipa fantástica.
Pode ver mais do trabalho de André Letria em Pato Lógico ou em diversos trabalhos por encomenda, entre os quais a revista VOA na qual trabalhamos juntos, pensada para o Clube Pelicas, o clube para os jovens associados do Montepio.